quarta-feira, 19 de setembro de 2007

ODE AO VULNERAVEL por Ma do Carmo Nino

“O enigma resulta nisso: em que meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer então no que está vendo o ‘outro lado de seu poder vidente”. Ele se vê vidente, toca-se tateando, é visível e sensível por si mesmo...”

Merleau-Ponty, O Olho e o espírito, RJ, Grifo, 1969, p. 35.

Milena, aparência de ninfa, tem seu próprio corpo como pátria na construção de uma poética calcada na vulnerabilidade do ser humano. No vídeo-instalação Tudo o que sustenta assim como também em Vertigem, encontramos um certo número de referências presentes na trajetória da artista: entre elas a eleição do vidro transparente incrustado no corpo desnudo reforçando a linha encurvada da coluna vertebral, elemento responsável pela sustentação, verticalização, movimento e equilíbrio do nosso corpo no espaço.

Ao redobrar esta vital linha estrutural com a presença do elemento transparente

que ainda por cima suga e é associado à idéia de fragilidade, Milena nos coloca de imediato em contato com uma questão crucial que perpassa sua obra até agora e que seria em princípio da ordem do inefável, do sublime, do irrepresentável, enfim: a insustentável leveza do ser e da própria existência, os riscos e as dificuldades do viver, ditos de uma maneira simples, onírica, além de poética e eficaz.

A utilização da auto – imagem, assim como a da própria nudez em si mesma, contrariam a associação que fazemos com certa freqüência ao narcisismo ou ao corpo desnudo como mero símbolo de erotismo que deságua em degradação física. A exposição da nudez corporal aparece aqui como elemento assertivo desta fragilidade que, associada ao espaço natural circundante e em contraste com a sua escala - amplificada pela sala de exposição - torna-se cúmplice deste corpo à mercê de, nesta evocação onírica do indefinido, do aventuroso da existência.

Tanto a escuridão noturna em Tudo o que sustenta quanto à atmosfera diurna em Vertigem constituem facetas de um mesmo tipo de alusão onde as referências temporais e espaciais atuam como uma espécie de suspensão em algum lugar-tempo indefinido, deslocado e inquietante, onde o tempo é desacelerado, para além da realidade mais pragmática do cotidiano.

O ato cujo esforço resulta no constante movimento pendular e que remete à sensação de vertigem, se desdobra àquela provocada pelo imenso poço, abismo onde se realiza a síntese de três elementos: água, terra e ar, além de três ordens cósmicas: céu, terra, inferno.

Já a ação de banhar-se em completo isolamento enfatiza a experiência sensorial do corpo através da pele e o fato de que ela decorra lentamente nos conscientiza de um outro sentido além do tato e da visão, que é a audição. São estes elementos que se unem para nos colocar de modo efetivo em contato com a cena de representação, complementando-a.

Se, como nos pondera Merleau-Ponty, nosso olhar se dá através do nosso corpo, pelos nossos sentidos, a visão do corpo do outro nos coloca diante de uma espécie de espelho com o qual podemos nos identificar, instaurando simultaneamente uma instância entre vidente e visível.